O bom – ou mau, depende do ponto de vista – das releituras é que os livros adquirem outra dimensão e a leitura torna-se mais crítica. Passada que é a vontade de conhecer a trama o leitor foca a atenção nos maneirismos de escrita, nas várias vozes do autor e na estrutura geral dos romances. Por vezes aquilo que parecia perto duma obra-prima revela-se afinal ter apenas um bonito papel de embrulho mas muito pouca substância. Não será assim com todos os livros – ainda hoje o Dune me surpreende a cada releitura e continuo a deleitar-me com a série do Mundo do Rio – mas infelizmente assim sucedeu com Hyperion e The Fall of Hyperion de Dan Simmons.
Hyperion, editado originalmente em 1990 foi vencedor do prémio Hugo para melhor romance desse ano e é o típico romance que estabelece as personagens e monta o palco para o denouement do segundo volume. Não é à toa que mais de metade de Hyperion é devotada às histórias de cada um dos peregrinos na última peregrinação ao Vale dos Túmulos no planeta Hyperion. Esta estrutura confere ao romance um tom episódico e é em grande parte responsável pelo maior interesse que este volume tem em comparação com o subsequente que opta por uma estrutura mais tradicional de space opera com enormes batalhas estelares travadas entre forças sem face usando armas para além da compreensão humana.
The Fall of Hyperion é o atar das pontas soltas deixadas ao longo de Hyperion e novamente noto que Dan Simmons peca por manter o suspense e os enigmas demasiado tempo sem resolução optando por um clímax algo apressado e que se despacha em três ou quatro capítulos seguindo-se uma vintena de páginas de resolução que pouco ou nada acrescentam.
Como já vai sendo habitual nos megavolumes de autores consagrados a edição é praticamente inexistente. Pequenos pormenores distraíram-me arrancando-me da sempre tão necessária suspensão da descrença vital para romances de FC. É o caso de ao longo de vários capítulos Sol Weintraub alimentar a sua filha com «the last of the nursing paks» ou Paul Duré que sustém queimaduras de segundo grau num capítulo sendo que alguns adiante já são de terceiro grau.
A igreja cultista dos Últimos Dias, também conhecida como Culto do Shrike escolhe sete peregrinos para regressarem ao planeta Hyperion e embarcarem na última peregrinação ao Vale dos Túmulos onde misteriosos artefactos que viajam para trás no tempo estão prestes a abrir-se. Cada um dos peregrinos tem a sua secreta agenda que o motiva a visitar novamente o planeta Hyperion, que embora não pertencendo à vasta rede da Hegemonia Humana está em vias de ser integrado na mesma. Esta integração, no entanto, fará despoletar um ataque dos Ousters, pós-humanos mutantes que vivem em Enxames que vagueiam na periferia da galáxia conhecida.
A ligar todos estes mundos estão os farcasters, portais de teletransporte cedidos pelo TechnoCore, um aglomerado de Inteligências Artificiais que aparentemente também têm a sua agenda secreta no que concerne a Hyperion.
É no meio de traições, desaparecimentos misteriosos, assassinatos a cíbridos, uma espécie de ciborgue, que reencarnam a essência do poeta John Keats (não é de estranhar que a personagem com o ponto de vista dum narrador omnisciente seja uma reconstrução elaborada do referido poeta tendo em conta que foi o inacabado poema dele que sugeriu o nome ao planeta), a sempre presente ameaça do Shrike e os dilemas postos perante um pai, que vamos vendo o desenrolar duma vasta tapeçaria que envolve todo um império de hedonistas humanos à beira do colapso iminente.
Factos que pareciam cruciais em Hyperion revelam-se Maguffins literários em The Fall of Hyperion o que pode ser uma espada de dois gumes dependendo da tolerância do leitor para ser deliberadamente «enganado» pelo autor. Nesta releitura essa tolerância estava no grau zero pelo que me irritou profundamente a manipulação autorial com argumentos que, mais bem trabalhados poderiam, em última análise, terem sido mais eficazes.
Outro ponto que não me satisfez por completo e que muitas das vezes são armadilhas para os autores que colocam os enredos em futuros distantes foram as constantes referências a elementos da cultura popular do século XX. Custa-me a crer que duas personagens conhecessem tão prontamente o tema musical “Somewhere Over the Rainbow”, quando mesmo hoje em dia poucos são os que ouvem esse tema. Além disso Meina Gladstone, CEO da Hegemonia, baseia os seus discursos em políticos como Churchill. Será que em tantos milhares de anos não houve outras fontes mais recentes em que basear os apelos retóricos. Mas concedo que este problema não é particular a Dan Simmons e por bastantes vezes já li outros autores que caem na mesma armadilha ao procurarem referenciais familiares aos leitores.
Ao que me consta Hyperion chegou a ser traduzido para português para uma publicação que até hoje nunca viu a luz do dia. Foi pena que tal não acontecesse há pelo menos dez anos atrás tendo em conta que hoje em dia e dada a multiplicidade de novos romances da chamada new space opera, Hyperion perdeu muita da frescura que trazia e poderá até parecer algo retro nas ideias políticas defendidas amiúde pelo seu autor que não consegue deixar de transparecer uma certa animosidade para com as culturas muçulmanas.
Pesem embora os defeitos aparentes e não tão aparentes destas duas obras e mais que não seja numa perspectiva histórica (afinal foi com estes romances que se iniciou em parte a renascença do fenómeno space opera) recomendo a sua leitura para quem tenha um pouco de interesse em romances de FC na linha de um Dune ou duma série Fundação, salvaguardando as devidas e respeitosas distâncias.
Se no entanto prefere ocupar o seu tempo com algo mais moderno recomendo os mais recentes romances de Alastair Reynolds que conseguem ser tudo aquilo que Hyperion deveria ter sido e mais ainda.